sábado, 5 de setembro de 2009

"Poema da malta das naus"

Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do sol.

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo.
Pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias,
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pêlo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão direita benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.


In Teatro do Mundo, 1958

Desconheço o autor do poema.
Encontrei-o em http://www.donagataempontodecruz.com/, quando procurava o poema de Fernando Pessoa "O amor não se sabe revelar" (também copiei daí a imagem do quadro de René Magritte).
Se já o conhecesse há uns anitos atrás, tê-lo-ia lido aos mesu alunos quando falávamos dos Descobrimentos. Compreenderiam certamente muito melhor a força de ânimo dos nossos marinheiros de antanho.

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